Em 05/06/2021 fiz a clássica escalada da Agulha do Diabo 4° V A0 E3 D3 230m na companhia de Rafael Caon e Júlio Toss, também associados da AGM. Esta foi uma experiência de escalada incrível, que exigiu um ótimo planejamento, preparação física, psicológica e técnica!

Apesar de firmarmos o plano desta escalada com antecedência, o Parnaso (Parque Estadual da Serra dos Órgãos) estava fechado devido a pandemia do Covid-19, mesmo assim mantivemos o plano de escalada na esperança que fosse aberto. A prorrogação dos decretos que mantinham o parque fechado renovava todos os meses, mudando apenas algumas pequenas flexibilizações. Até que em 01/06, na última possibilidade, faltando 4 dias antes da escalada o parque reabriu!!

Foi muita sorte mesmo, a esperança é a última que morre! Se não, as alternativas seriam as escaladas na própria cidade do Rio de Janeiro (como foi em 2020) ou alguma escalada pela região de Petrópolis.

O plano logístico original era fazer a escalada em três dias, o primeiro dia de trilha até a base da Agulha, o segundo dia para escalar e descer, e o terceiro dia para voltar a trilha, com os pernoites em bivaque. Aconteceu que o Parnaso abriu, mas proibiu os pernoites no parque e então tivemos que mudar os planos para fazer tudo numa tacada só, no que chamamos de bate-volta.

Assim o desafio era muito maior, fazer 3 dias em 1. Com esta mudança, o perfil da escalada passava muito mais para o lado da superação, do que o contemplativo. Porém, mesmo assim decidimos juntos fazer desta forma, que é muito mais cansativa, mas dentro das regras do parque. Eu preferi não pensar muito, apenas aceitei que seria desta forma, que treinei e estava preparado para tanto.

Saímos da Urca no RJ de carro e iniciamos a trilha no Parnaso ao amanhecer, a trilha original do parque é bem batida, sem muitas pedras e galhos. Ainda cedo contemplamos vistas espetaculares da cadeia de montanhas, principalmente com a imponência dos Três Picos de Nova Friburgo, que se destacavam no horizonte.

Seguimos numa subida forte entre alguns descansos, reconhecendo alguns pontos do parque e se abastecendo de água, até chegarmos em uma parte mais alta descampada. Neste ponto já avistávamos por outra perspectiva as montanhas que estávamos acostumados a ver de baixo. Vimos todo os cumes do complexo Dedo de Deus (Escalavrado, Dedo de Nossa Senhora, Dedo de Deus e Cabeça de Peixe) e algumas outras como a Verruga do Frade e Garrafão.

A Agulha do Diabo é vista pela primeira vez no Mirante do Inferno, onde se tem uma imagem completa desde a sua base até o cume. A primeira impressão foi de intimidação, chegou a dar um frio na barriga só de pensar que eu ia subir ali!

A partir do Mirante, a trilha fica mais difícil, porque desce em um vale por uma caneleta de pedras soltas e escorregadias, e depois sobe até a base da Agulha. A vista desta perspectiva, de baixo, é sinistra, e as nuvens passavam como uma rajada lá em cima, porque ventava muito forte. E por isso, já prevíamos que o cume, totalmente exposto, estaria em condições não muito agradáveis.

Então o Caon iniciou a guiada, as primeiras cordadas eram um pouco exigentes, na terceira cordada tinha uma travessia relativamente fácil, com alguns bicos de pedras escondidos na vegetação, até chegar numa trilhazinha estreita e rente a rocha de acesso a primeira chaminé.

Então o Caon iniciou a guiada, as primeiras cordadas eram um pouco exigentes, na terceira cordada tinha uma travessia relativamente fácil, com alguns bicos de pedras escondidos na vegetação, até chegar numa trilhazinha estreita e rente a rocha de acesso a primeira chaminé. Um primeiro imprevisto aconteceu que tomou tempo, o Caon começou a guiar na chaminé praticamente em zig-zag, desviando de algumas pedras entaladas e a corda acabou trancando em uma delas, faltando uns dois metros para ele chegar na parada, ele teve que se colocar em auto num pino, mas não podia dar segue porque a corda estava trancada. Então eu e o Júlio tivemos que prussikar (técnica de ascensão pela corda) na corda presa para destrancar ela. Foi cansativo, se debatendo naquelas paredes estreitas, e ainda mais que no meio do caminho, a corda que ficava para baixo do prussik prendeu num bico de pedra mais abaixo, e isso me deixou totalmente trancado, tanto para frente quanto para trás. Então, tive que esperar o Julio chegar na minha corda presa abaixo, para me liberar e seguir (mas agora recolhendo a corda nos meus ombros para não trancar de novo, ficando de aprendizado). Depois eu destranquei a da frente e liberei o prussik para o Caon alcançar a parada e dar a segue.

Foi quando chegamos em um platô que dava acesso ao crux (parte mais difícil da escalada), que se chama Cavalinho, uma estreita fenda de meio corpo em diagonal e dava acesso a chaminé da unha. Essa parte é um verdadeiro teste psicológico porque fica exposta para um abismo. Existem duas maneiras de fazer, por dentro “minhocando” ou por fora “pagando barra”. Nem cogitamos fazer por fora, pagando barra haha. Em compensação por dentro é uma verdadeira ralação, porque vai se arrastando com a perna esquerda por dentro da fenda e a direta para fora no abismo, sem nenhuma agarra de pé para ajudar a impulsionar.

O Caon foi o primeiro, venceu o lance e já decidiu dar a segue no primeiro pino da chaminé da unha, porque começou a se sentir mal, baixou a pressão. Estávamos todos cansados de uma trilha intensa, sem muito descanso e sem se alimentar direito. Desde o platô, o Júlio teve que balançar a corda várias vezes para conseguir passar ela por cima do bico da chaminé, só assim a gente conseguiu passar uma garrafinha de água pela corda para o Caon.

Este imprevisto tomou mais um tempo, mas ele melhorou um pouco e começou a segue. Chegou a minha vez e eu nem me atrevi a olhar pra baixo, fiquei com a cabeça olhando para dentro da fenda e tentando deixar o corpo o mais entalado possível para não ficar tão para fora, o arraste é cansativo, mas curto. Depois veio o Júlio, que antes me passou a Gopro pela corda e eu fiquei filmando de pé no bico da fenda, aí sim eu dei uma olhada no abismo haha.

Depois começamos a chaminé da unha, ela começa mais estreita e vai alargando, mudando a técnica o tempo todo. É bem cansativa, porque as pernas ficam constantemente fazendo força de oposição na parede, com as costas na outra. E mesmo bombando as pernas, é preciso seguir até achar uma posição para o “descanso”, eu urrava a cada movimento de tão cansado. Por conta de tudo que aconteceu, do platô até a ponta da unha demorou mais de 2h.

Na cordada final seguimos por um trecho íngreme pelo cabo de aço antigo e enferrujado, não dava para confiar totalmente, mas é o que tinha. Então ali estávamos nós três, às 17h10, no cume da Agulha do Diabo à 2.050 metros acima do nível do mar.

Fazia muito frio, uns 5 °C, ventava à 35km/hora e já estava escurecendo. Algumas rajadas chegavam a nos empurrar e por isso ficamos sentados naquele cume estreito que mal cabiam nós 3. A condição não era agradável para ficar apreciando a vista (conforme prevíamos lá na base) e já montamos o rapel rapidinho para descer de uma vez. Para agilizar chegamos a combinar com o Júlio, “escreve o que quiser no livro cume, que nós assinamos”, e ele escreveu “A escalada mais insana da vida” a data e assinamos.

 

Apesar das condições, ficamos impressionados com a vista lá de cima, com o pôr do sol, a vista para as outras montanhas, ao fundo a Baía de Guanabara e a cidade do Rio de Janeiro. Antes do rapel, falei para o Júlio em tom de humor, “acordamos lá e agora estamos aqui, pensa em tudo que passamos, e estamos só na metade do caminho”.

Já estava noite, com as lanternas ligadas no capacete, os primeiros dois rapeis foram tranquilos, mas mais um grande imprevisto aconteceu no terceiro, que nos tomou mais 1 hora, esse de perrengue total. Estávamos com duas cordas de 60 metros unidas por um nó para um rapel mais longo, assim conseguíamos “pular” paradas para ganhar tempo. Numa dessas, o Caon desceu e a corda ficou tensionada por mais de 1 hora. Eu e o Júlio ficamos na estreita parada encolhidos de tanto frio, sem a mínima ideia do que estava acontecendo, porque não conseguíamos entender os gritos do Caon, ele estava muito longe e o vento rajava mais alto.

A corda estava tão tencionada que nem se movimentava, eu estava com as pernas encolhidas atrás dela, se liberasse um mínimo eu iria sentir. A condição era péssima, noite, frio, vento, sem água, sem comida e sem celular para pedir socorro. Se o Caon não resolvesse, iriamos ficar ali, porque não tinha o que fazer.

Então, muitos pensamentos surgiam… Será que ele se machucou? Caiu a pressão de novo? Será que vamos precisar de resgate? Quanto tempo/dias aguentamos aqui parados esperando por resgate sem recursos? Quais são os planos B e C? A verdade é, que não tinham alternativas, se não esperar. Meus pés estavam congelados, mesmo com os dedos ultra apertados, eu não tirava a sapatilha porque iria sentir mais frio ainda.

Enfim, depois de quase 1 hora o Caon grita “auto”, foi um verdadeiro alívio! Descemos até ele, e nos contou que ele desceu até o fim da corda procurando pela parada e não achou, e então prussikou de volta por uns 20 metros tentando achar a parada. Quando a ponta da corda prendeu lá embaixo num galho (o mesmo que me aconteceu comigo no prussik da primeira chaminé), daí ele rapelou tudo de novo para desprender. Logo, iniciou novamente o prussik recolhendo a corda nos ombros. Foram uns 40 metros até achar a bendita parada, ou seja, 60 metros de prussik naquelas condições!

Depois foi só rapelar até a base e iniciar a trilha de volta, que não acabava nunca, várias pausas para descanso com o corpo já no seu limite. Chegamos no carro às 3h da madrugada de domingo, ou seja, foram mais que 24 horas de atividade intensa. Estes imprevistos todos, contamos como um ganho de experiência e provam como é importante o planejamento e dedicação aos treinos, para estar preparado sempre além do desafio.

Além dessa escalada, eu fiquei depois mais 6 dias em Teresópolis junto com o Caon com o objetivo de escalar as quatro montanhas do Complexo Dedo de Deus, ainda dentro do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Escalamos o Dedo de Nossa Senhora, o Escalavrado e o Dedo de Deus. A Cabeça de Peixe ficou para próxima, devido à chuva. Fiquei muito feliz e grato por estes dias na montanha, com momentos incríveis de natureza, amizade, aprendizado e superação!